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jornalista, escritora e viciada em café.
@neilabahia

Cale a boca, estudante [idiota] de jornalismo

E isso de ser jornalista? Este é um texto - relato, de Zuenir Ventura, escrito em 2004. Apesar de antigo cabe muito bem neste momento de proliferação de cursos de jornalismo, formação de idiotas, mercado de trabalho escasso e obscurantismo da classe.

Por Zuenir Ventura 23.03.2004
Uma vez chamei de "Samba do diálogo doido" as entrevistas que alguns estudantes fazem com a gente. São conversas sem pé nem cabeça, em que não se sabe o que irrita mais, se o despreparo do entrevistador ou a falta de orientação por parte do professor. Chegam sabendo por alto quem você é ou o que faz e tendo apenas uma vaga idéia do assunto sobre o qual devem perguntar. Não são todos assim, evidentemente; há alunos excelentes que entrevistam melhor do que muitos profissionais.

Nestas últimas semanas, porém, com a aproximação do 40o aniversário do golpe militar, intensificou- se o assédio a mim e, pelo que sei, a vários colegas, de jovens atrás de informações sobre a ditadura militar. Há casos em que a confusão e o desconhecimento são de dar pena ou fazer rir. Entre os despreparados, há pelo menos duas categorias: a dos humildes, que pedem desculpas pelo que não sabem e acabam despertando a nossa paciência. E a dos ignorantes espertos e cheios de si, dos quais aí vai uma amostra.

- Como é que era aquela época? Achei que depois dessa viria outra do gênero: "Como é que é essa coisa de ser jornalista?" Com o tempo aprendi a dar respostas igualmente vagas ou desconcertantes: "Ah, depende". Ou então: "É como essa coisa de ser estudante de jornalismo". Quando o jovem começou assim a entrevista, eu estava de mau humor. Resolvi então gozá-lo, respondendo mais ou menos assim:

- Era uma época parecida com a atual, só que muito diferente. Como todas, aliás, variando conforme o ponto de vista. Não queria dizer absolutamente nada, e eu esperava que ele replicasse com um "como assim?", ou "explica melhor". Nada. Ele se deu por satisfeito, o que aumentou minha irritação.

- O senhor escreveu um livro sobre o período, não é?
- Sobre que período?
- Sobre o período em que aconteceu tudo aquilo.
- Tudo aquilo o quê?
- Toda aquela confusão.
- Escrevi um livro sobre 1968.
- Ah, sim: "O ano que não aconteceu".
- Não. "O ano que não terminou".

Você pensa que ele se encabulou? Nem aí.

- É verdade. Fale um pouco sobre ele.
- Você não leu? - Com esses trabalhos todos para fazer, ainda não tive tempo. - Mas o livro foi lançado há mais de 15 anos.
- É verdade.

O que mais me irritava era que ele não dava o braço a torcer. Tinha sempre um "é verdade", como se minha palavra dependesse do crivo dele. Era como se o que eu dizia só tivesse validade quando ele endossava: "é verdade".

- E você não teve tempo de ler?
- Não, mas faz um resumo para os nossos leitores.

Aí tive que rir. Era tão folgado que ficava engraçado. Além do resumo, ele queria imprimir mais realismo à entrevista e falava como se milhares de leitores, "os nossos leitores", fossem ler este emocionante diálogo. Foi quando me dei conta do seguinte:

- Escuta aqui: se a pesquisa é sobre 64, o que 68 tem a ver com isso?
- É que eu quero fazer um trabalho abrangente. Sou assim: quando escolho um tema vou fundo, quero saber tudo. Vi que ele era imbatível, não tinha jeito. Um grande debochado, só podia ser. Desisti de tentar gozá-lo, já que eu estava perdendo todas, e propus:

- Vamos nos concentrar em 64.
- Como o senhor quiser. Pra mim tanto faz. Pode começar.

Ele não só estava mandando no jogo como agora me dava ordens e permitia que, nesse duelo, eu escolhesse as armas: "Como o senhor quiser". Penso na crônica que escrevi há oito anos e percebo que nada mudou: parece o mesmo aluno de então, com as mesmas perguntas, a mesma cara de pau. Será que o outro virou coleguinha? E este de agora, será que vai conseguir o diploma? Respondo qualquer coisa e fico à espera da indefectível pergunta, que costuma ser ou a primeira ou a última. Ela vem.

- Agora vamos falar um pouco do senhor: como é que começou? Vou à forra. Já tenho a resposta pronta.
- Estou quase indo embora e você vem me perguntar como comecei?

Ele diz "é verdade", me manda um abraço e, antes de desligar, ameaça: "Quando o trabalho estiver pronto, envio uma cópia para o senhor. Qual é o seu endereço?"
Não devia confessar, porque isso não se faz, mas dei o endereço errado.

Zuenir Ventura é jornalista e escreveu, entre outros, Minhas histórias dos outros.

zuenir@nominimo.ibest.com. br
http://nominimo. ibest.com. br/

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